Página de um velho diário

18/12/89

Acordei de ressaca. Enjoada, machucada, com um estranho sentimento de perda. Não, não perdi os sonhos. Mas custo a acreditar que Collor foi eleito. Apesar de todas as pesquisas e de todas as análises políticas, custo a acreditar. O Brasil não merecia este resultado.
***
Ao me olhar ao espelho, tomei o maior susto. Meus cabelos estão escandalosamente vermelhos. Não era pra ser assim. Duas horas no cabelereiro pra aumentar a auto-estima e saio com cabelos de fogo. Mais pareço uma tocha humana.
***
Quando saí pra trabalhar ele estava me esperando na calçada. Pele retinta de brilho negro e aquela avidez de olhar penetrando até meus pensamentos. Não me pediu nada. Nunca me pede nada. Segue ao meu lado como um cãozinho sem dono que segue alguém que não lhe chuta. Responde ao que pergunto e só.
Paramos na padaria. Tão pequeno ele é que apenas seus olhos ultrapassam a barreira do balcão. Segui-os, os olhos. Namoravam encantados uma barrinha de chocolate, como se fosse a felicidade inalcançável. Dei-lhe depois do café com pão. Não me agradeceu. Me olhou com o preto dos olhos nadando de choro alegre. Bobos, os meus olhos também nadaram. Ando à flor da pele. Não por causa do menino.
***
São onze da noite e as crianças já dormem. Saudade do Be (ou é apenas esta solidão comprida). Ainda não me acostumei com o vermelho dos cabelos. Mas diante do resultado das eleições, tudo fica pequeno.
No entanto... meu mundo é aqui e agora. Agora não, amanhã. Tenho que ser testemunha da Bina. Neste país ainda terá uma lei que punirá um homem - se depender de mim, faço até passeata pra que isso aconteça! Fico puta só de lembrar o que a pobre sofre com aquele marido. Meu medo é que depois desta denúncia ela sofra ainda mais. Mas tinha que denunciar.
Vou dormir. Tou me sentindo péssima. Pelo Collor, pelo menino, por Bina, pelos meus cabelos e por estas férias que nunca chegam. Ah, antes vou experimentar a nova lingerie. Vai que eu torça o pé e caia na rua. Ao menos a lingerie será nova. Credo, cada coisa que penso!

Os anos passam, homens continuam batendo em mulheres (apesar da lei Maria da Penha), crianças continuam com fome (apesar do bolsa-família), Collor continua sendo eleito (apesar do impeachment). Só meus cabelos mudam de cor.

Beijos a todos. E obrigada pela bela e calorosa recepção no post passado.

O café

Aqui se faz prosa, verso e a bobagem que pintar, em qualquer tempo e qualquer lugar - na página principal e nos comentários. Tudo com a marca registrada de mineira desvairada. Aqui, realidade e ficção são vice-e-versa. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos conhecidos pode não ser mera coincidência. Ou pode ser uma grande fantasia.

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"Quer saber o que eu penso? Você aguentaria conhecer minha verdade? Pois tome. Prove. Sinta. Eu tenho preguiça de quem não comete erros. Tenho profundo sono de quem prefere o morno. Eu gosto do risco. Dos que arriscam. Tenho admiração nata por quem segue o coração. Eu acredito nas pessoas livres. Liberdade de ser. Coragem boa de se mostrar. Dar a cara a tapa! Ser louca, estranha, chata! Eu sou assim. Tenho um milhão de defeitos. Sou volúvel. Sou viciada em gente. E adoro ficar sozinha. Mas eu vivo para sentir. Por isso, eu te peço. Me provoque. Me beije a boca. Me desafie. Me tire do sério. Me tire do tédio. Vire meu mundo do avesso! Mas, pelo amor de Deus, me faça sentir... Um beliscãozinho que for, me dê. Eu quero rir até a barriga doer. Chorar e ficar com cara de sapo." Clarice Lispector